Noutro dia perguntaram-me qual era a definição de filme independente e eu dei a resposta mais comum: é um filme feito fora do sistema dos grandes estúdios. Depois de ver Carcasses (e outros filmes deste festival) a minha resposta poderia antes ser "é um filme em que quase não há diálogos".
Claro que seria uma resposta errada, mas se pegarmos no exemplo deste filme - em que cerca de 85% do tempo seguimos os personagens sem qualquer interacção - ficamos convencidos que tal não funcionaria com um público mais mainstream, menos habituado ao som do silêncio.
O problema deste Carcasses é que aqui, ao contrário do que se passa em Le jour où Dieu est parti en voyage, por exemplo, tal silêncio é um ponto em desfavor do filme.
O personagem central, Jean Paul Colmor, é um velhote com o que em inglês se chama CHD (e eu traduzo para coleccionite. João Moreira, a invertar termos médicos há 27 anos!) e que ganha a sua vida gerindo uma espécie de sucata/lixeira. Vive sozinho e vive feliz, porque segundo o próprio "tem sempre que fazer".
Jean Paul é - não o sabia enquanto via o filme - uma pessoa real, que vive na parte francófona do Canadá e o filme é uma mistura entre documentário e ficcionalização da sua vida. (Podem ser amigos dele no facebook e tudo!) É curioso ter lido isto, porque durante o filme tinha ficado confuso se seria uma coisa ou outra e afinal é as duas. Everyone wins.
Este excelente equilibrio entre os dois métodos cinematográficos acaba por ser o ponto mais alto de um filme que ganhava se tivesse deixado falar mais o seu protagonista. Jean Paul pode ser calado, tal como muitos solitários o são, mas quando fala diz coisas interessantes, mais até que a representação visual do seu dia a dia.
(Mais uma nota para a sessão em si: desta vez era algo que não podia ser previamente resolvido, mas não há dúvida que neste Indie acontece de tudo...hoje foi uma mosca que ficou presa no projector, e cuja sombra apareceu na tela durante grande parte do filme)
Ilha da Cova da Moura:
Antes da projecção do filme, o realizador Rui Simões disse-nos que decidiu fazer este filme porque a realidade que encontrou no bairro estava longe de corresponder ao que via nas reportagens televisivas. Curiosamente, eu fui ver o filme do realizador Rui Simões porque quando fui a primeira vez à Cova da Moura senti precisamente o mesmo...o que se vive por lá é tão mais bonito que a imagem que é passada cá para fora!
A Cova da Moura, para quem não sabe, é um bairro clandestino nos subúrbios de Lisboa. É uma zona que só costuma aparecer nas notícias por causa de violência, sobretudo ligada a tráfico de droga. Muita gente tem medo de ir à Cova da Moura e, como uma moradora entrevistada para o filme confessa, muita gente da Cova da Moura tem vergonha de dizer que lá vive.
Pela minha parte, fui lá apenas duas vezes (em trabalho, curiosamente numa colaboração com a Associação Cultural Moinho da Juventude, que é um dos focos do filme e é - realmente - o coração do bairro) e em ambas as ocasiões fiquei completamente rendido ao que por lá se passa. É que, como outro entrevistado refere, na Cova paga o justo pelo pecador e a grande maioria que não quer nada com o crime e tenta viver a sua vida com dificuldades sofre o estigma criado pelos poucos que realmente são "bandidos" e que muitas vezes nem sequer lá vivem.
E porquê uma ilha? Porque a grande maioria dos residentes da Cova da Moura tem origem em Cabo Verde, e as suas tradições e vivências são muito próximas das desse país. Ao ponto de se dizer que a Cova da Moura é a décima primeira das dez ilhas cabo verdeanas.
Este filme tem um grande mérito. É um filme feliz sobre um bairro feliz, onde ainda há um sentido de comunidade e onde todos festejam as alegrias de todos e todos partilham os lutos dos seus queridos. É um bairro africano, onde a música, a dança e a (deliciosa) catchupa estão sempre presentes. É este o bairro que Rui Simões conseguiu captar como nunca ninguém tinha captado antes.
É um filme para desfazer preconceitos. E era bom que finalmente esses preconceitos fossem mesmo derrubados, para que as pessoas vejam que a Cova é muito mais do que aquilo que se vê nos telejornais. Eu quero lá estar dia 19 de Junho, para a grande festa anual, a Noite de Sanjon - uma mistura do São João do Porto com o Carnaval do Rio - alguém me quer acompanhar?
Como desenhar um círculo perfeito:
O Marco Martins deve ter sentido a imensa pressão de fazer um segundo filme que fosse ao nível do Alice, uma obra-prima do cinema português que teve o reconhecimento de quase todos o que o viram. Para mim continua no topo da lista dos 3 filmes portugueses de que realmente gosto muito (e que já falei algures no blog, vejam se encontram através do botãozinho search).
Do outro lado da equação temos o público, que estava com uma grande expectativa sobre o que poderia vir desta grande promessa do cinema português. Ora, o que posso dizer depois desta ante-estreia nacional é que se o Marco Martins já pode sentir menos pressão - o filme está feito e mostrado! - o público terá de continuar à espera de um filme ao nível do Alice.
É que enquanto que Alice é um filme diferente de tudo o que é costume ver-se no cinema português, aqui já temos a mesma série de características que há tanto tempo o vêm minando. Exemplo maior disso é, neste filme, o facto do pai dos protagonistas ser francês...não é minimamente relevante para a história, mas permite que mais de metade do filme seja falado na língua de Moliére, uma daquelas coisas que não pode faltar num bom (mau!) filme português.
É pena o Marco ter seguido este caminho; a excelente capacidade técnica claramente continua lá (alguns planos são lindíssimos!) e ao longo do filme ainda temos alguns dos seus traços característicos, mas agora estão esbatidos no meio de tanta decadência forçada. (Outro ponto da hipotética checklist)
Até a história é inferior. Enquanto que em Alice é praticamente impossível não nos solidarizarmos com Mário, aqui a obsessão sexual (não correspondida) de Guilherme pela sua irmã Sofia não só não é algo com que muita gente se possa identificar, como é retratada de uma forma tão doentia que não apela à empatia.(Um dia faço uma SMR em rima)
Claro que o ser doentio é propositado. Até é fácil entender isso desde o início (se virmos o estado da casa em que vivem como uma metáfora, por exemplo) e de certa forma não podia ser de outra forma, afinal de contas é um filme sobre incesto. Mas não deixa de ser difícil de aceitar o pedido do realizador, acompanhar a obsessão de Guilherme até à sua concretização.
Vou já acabar porque noto que a crítica está a ficar demasiado circular (é do sono), mas preciso de dizer uma outra coisa. A história-base do filme é a que disse e, por muito doentia que seja, estava a ser bem explorada durante o primeiro do terço do filme, tal como o foi durante os minutos finais (a última cena é belíssima, e mesmo a cena de sexo está muito bem realizada), mas entre esses dois momentos a história perde-se totalmente. Não sei o que se passou ali, mas a opção de dar tanto tempo de antena ao pai dos dois irmãos sai furada quando, claramente, o sumo da história estava na relação de ambos com a mãe.
Se antes estava ansioso por ver se o brilhantismo de Alice se repetia, agora só quero que esse brilhantismo volte. Não desejo que a melhor longa do Marco Martins seja o seu filme de estreia, mas se continuar por este rumo tão pouco original é bem capaz de ser isso o que lhe acontece.
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