terça-feira, 26 de outubro de 2010

Wall Street 2: Money Never Sleeps



Que o dinheiro nunca dorme já nós sabíamos, agora que o realizador de um filme adormece enquanto o realiza isso sim seria novidade. Pois foi com essa impressão com que fiquei em dois momentos do filme: as "sessões de formação" sobre o funcionamento da Bolsa e aquele grande disparate que é a cena final.

Mas já lá vamos, que o filme também tem coisas boas. É, aliás, merecedor de uma nota final positiva mas não se safaria de ir à oral.

A razão que levou Oliver Stone a realizar uma sequela ao seu Wall Street, de 1987, mesmo depois de ter dito que nunca realizaria sequelas faz algum sentido: a actual situação económica pede mesmo para que se continue a explorar o funcionamento do sistema financeiro mundial. Pegando nisso, Oliver Stone e a sua equipa de guionistas (que teve bastante rotatividade, ao que sei, o que poderia explicar aqueles tiros no pé a que já me referi) fizeram Gordon Gekko, o famoso protagonista do primeiro filme, sair da cadeia e cair de "pára-quedas" num mundo que avançou a um ritmo avassalador.

Gordon Gekko (Michael Douglas, que é sem dúvida um dos dois pontos fortes do filme mas que apesar de tudo não está à altura da prestação de 1987) pode ter estado na cadeia enquanto as novas regras especulativas foram definidas mas não perdeu o jeito para aquilo e é assim que, abandonado pelos seus pares mas admirado por muitos, resolve aproximar-se de Jacob (Shia LaBeouf, que já parece um adulto) e, aproveitando-se da admiração que este lhe nutre, voltar a encher-se de dinheiro.

Se a história fosse esta a coisa até tinha potencial, era aqui que o desenvolvimento da história devia ter acabado mas não, não se fica por aqui. Acontece que Jacob é não só um personagem muito mal definido (um corretor da bolsa com muito boas intenções?) mas, sobretudo, é namorado da filha de Gekko...uma Carey Mulligan que não me consegue agradar minimamente e que, adivinhe-se, não fala com o pai pela desgraça que este causou.

A partir daqui é tudo downhill, como se costuma dizer. Não faz sentido nenhum dar tanta atenção às crises de um casal num filme que tem como grande foco de atracção o mundo financeiro. E aquele final, minha nossa, aquele final é tão mau que até ao longe se consegue topar o que é que a produtora disse ao realizador: "Pois é, meu amigo, isto é tudo muito bonito mas agora queremos abracinhos!". E assim se fez...um filme que poderia ser o An Inconvenient Truth da alta finança acaba, nos minutos finais, por se transformar num qualquer filme romântico da Sandra Bullock. Não vos vou dizer o que é que se passa para não estragar o filme a quem o quer ver, mas digo-vos que ainda não conheci ninguém que já o tenha visto e tenha gostado do fim.

Falei aí do An Inconvenient Truth de propósito, já que este filme consegue - no meio dos dramas familiares de Jacob e a menina Gekko - espetar-nos com uma data de informações sobre como funciona a Bolsa e como se produziu esta crise financeira. Seria à partida uma boa ideia já que, presumo eu, a maioria das pessoas que vão ver o filme não serão génios do mercado de capitais e, tal como eu, não perceberiam metade dos diálogos se não fossem explicados.

O que acontece, porém, é que ficamos então com três filmes: a sequela do Wall Street original (a parte mais forte do filme, e que faz com que apesar de tudo a minha apreciação seja positiva), o drama familiar que não veria nem que passasse ao Domingo à tarde na TVI, e o documentário sobre o funcionamento da Bolsa que seria muito mais bem vindo se tivesse passado, por exemplo, como uma curta metragem antes do filme.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Doc Lisboa dia 7: nadinha de nada

Hoje tinha planeado ir ver o Skinhead Attitude. Fui hoje à hora do almoço comprar os bilhetes e informaram-me que já estava esgotado.
Como já não vou a mais nenhum filme do Doc este ano aproveito para me despedir (do festival, não das SMR) e sugerir a alguém que tenha visto o filme para me mandar a sua crítica, para eu a publicar aqui.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Doc Lisboa dia 5: Crossing the Bridge: The Sound of Istambul

Crossing the Bridge: The Sound of Istambul:


Há muito que não passava tanto tempo de olhos fechados durante uma sessão de cinema!

Não tenho por hábito dormir em salas de cinema. Por muito cansado que esteja consigo (quase) sempre manter-me de olhos abertos e ver o filme com atenção, sendo a única excepção que me recordo o Topsy Turvy, e mesmo esse só adormeci em condições muito especiais.

Em Crossing the Bridge, um filme de Fatih Akim realizado antes do aqui analisado Soul Kitchen mas só agora exibido (pelo menos perante os meus olhos) também não adormecei. Apanhei-vos não foi, marotos? Passei muito tempo de olhos fechados porque num filme em que a música assume todo o protagonismo valeu a pena apreciar assim mesmo o som que vem do magnífico sistema de som do São Jorge.

Já tinha dito na SMR ao Soul Kitchen que a banda sonora era de primeira qualidade e aqui pude confirmar que o realizador tem muito bom gosto musical. Neste filme resolveu explorar as várias cenas musicais de Istambul, capital do seu país de origem, desde a música tradicional ao hip-hop, e o resultado final é - a nível sonoro - muito bom.

Ao longo da hora e meia do filme é Alexander Hacke (baixista dos Einstürstende Neubaten) que nos guia pelas ruas de Istambul para nos apresentar algumas das suas descobertas musicais. É curioso que apesar do título e do foco geográfico do filme a cidade em si não tem muito protagonismo, sendo pouco explorada enquanto espaço urbano mas apenas como ponto de encontro de culturas musicais diversas.

É por isso que não somos apresentados a monumentos como a Hagia Sophia ou ruas como a Ataturk Boulevard e quando os vemos é mais por recurso a imagens de arquivo que propriamente com filmagens feitas pelo realizador. O (excelente) trabalho de Fatih Akim neste filme é sobretudo o de fazer uma excelente edição de imagem e som, em que a música, as entrevistas e as opiniões do narrador se fundem de uma forma tão boa que não queremos deixar de conhecer mais aprofundadamente aquela música. O único problema é, a meu ver, o ter optado pela música mais calma para o final do filme...em termos de energia do público a coisa provavelmente funcionaria melhor ao contrário.

Se são apaixonados por Istambul e não se interessam muito por música não vale a pena. Se são como eu (e muitos de vocês são, que eu bem sei) e têm na música uma outra grande paixão toca a ver este filme e a descobrir (consoante o gosto) os Baba Zula, os Duman, os Replikas, o Ceza ou Orhan Gencebay (vale a pena carregar no link nem que seja só para ver O bigode). Eu gostei de os descobrir e posso confirmar que já estou a fazer as minhas próprias explorações.


O filme passa de novo dia 23 às 23h.


P.S.: Um pormenor que quase ninguém reparou, aposto, é que foi o Andrew Bird a fazer a edição de filme. Não é o Andrew Bird que muitos de vocês podem conhecer do meio musical, mas isso não interessa nada!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Doc Lisboa dia 4: Claude Lévi-Strauss: Return to the Amazon

Claude Lévi-Strauss: Return to the Amazon:



Já conhecia o nome de Claude Lévi-Strauss há uns tempos. Não me lembro em que contexto ouvi falar dele mas devo confessar que quando vi o nome no programa no Doc não o associei a nada, tanto que nem estava nos meus planos ir ver este filme. (Ia ver o Hitler's Hit Parade, que estava esgotado hoje...deviam ter posto este filme numa sala maior, senhores organizadores)

Foi, portanto, por acaso que dei hoje por mim no cinema Londres a ver aquele que muito provavelmente será o meu filme preferido desta edição do festival. A descrição não o deixaria antever, as minhas expectativas não o previam mas aconteceu.

Ainda mais que na ficção, a principal razão pela qual adoro documentários é o poder testemunhar histórias que não a minha, ver realidades que não conheço e viver vidas que não vivi e neste filme tive a sorte de ser apresentado à realidade do povo Nambikwara, estabelecido algures na floresta amazónica e estudado pela primeira vez em 1939 pelo senhor que ainda hoje é considerado o pai da antropologia.

Os Nambikwara são um povo indígena que teve o azar (ou a sorte, para quem pense ao contrário de mim) de ver o seu território cruzado pela linha telegráfica logo em inícios do século XX. Claro que isso facilitou o seu encontro com o "homem branco" e a consequente miscigenação cultural (sim, usei a palavra miscigenação). Felizmente ao longo do filme vemos imagens fotográficas e até alguns vídeos filmados por Lévy-Strauss intercaladas com imagens actuais dos restantes Nambikwara e conseguimos aperceber-nos que algumas tradições ainda se mantêm.

Enquanto que noutras ocasiões aproveitaria para falar agora dessas tradições, aqui não o vou fazer - é realmente complicado aprofundar muito as minhas ideias sobre tradições que desconheço e que apenas vi neste filme - mas não quero deixar de referir que fiquei contente por ver que mesmo após anos de "colonização" destes povos indígenas as tradições ainda se mantêm, contra todas aquelas coisas que nós vemos como básicas mas que para gente de outros povos não o é.

Esperemos é que, com a crescente exploração da floresta amazónica para fins económicos, estes povos consigam mais uma vez sobreviver. Honestamente parece-me mais difícil, porque agora o inimigo é maior e mais destrutivo, mas espero estar enganado e daqui a uns anos poder ver uma espécie de sequela deste filme, em que nos mostrem as crianças que vi hoje a viver como adultos da sua cultura.




P.S.: Não, não me esqueci de fazer SMR ao filme de ontem, não vi foi filme nenhum. Fica aliás o aviso que não haverá posts todos os dias do Doc. É verem quando haverá

sábado, 16 de outubro de 2010

Doc Lisboa dia 2: Congo in Four Acts

Congo in Four Acts:



Avaliar um documentário é mais difícil que avaliar ficção, mesmo quando só se diz disparates como eu. É que de tempos a tempos lá vem um daqueles filmes que parece não ter qualquer "factor de redenção" mas que ainda assim tem algum interesse.

Este Congo in Four Acts é um desses casos: nenhum dos seus 4 actos (Ladies in Waiting, Symphony Kinshasa, Zero Tolerance e After the Mine) tem uma temática daquela que nos enchem as medidas. Já vou dizer quais as histórias, mas por agora fica a informação de que são 4 curtas de 4 realizadores congoleses que foram editadas para que se tornassem apenas uma longa.

Quando digo editadas quase tenho de me rir, porque para mim colocar um separador preto com letras brancas entre os filmes sem explicar minimamente o contexto do filme, sem haver algo que se pareça com um narrador e sem haver o mínimo fio condutor não me parece tanto um trabalho de edição como o que na realidade é - utilizar o copy/paste não no Word mas no iMovie.

É assim que caímos em Ladies in Waiting, a primeira das curtas, verdadeiramente de pára-quedas numa maternidade de uma cidade que não é em Kinshasa mas que também não nos é explicado onde é. Aqui o que é interessante ver é o facto de a maternidade aceitar pagamentos em espécie (i.e., deixar os brincos ou a televisão) e o prender as mulheres lá dentro enquanto não pagam as contas.

É assim que caímos em Symphony Kinshasa, o pior dos filmes (já que nem dentro do próprio filme tem o tal fio condutor) mas que tem como mensagem mostrar as quantidades absolutamente gigantescas de lixo que poluem as ruas de Kinshasa e os efeitos das frequentes cheias da cidade.

É assim que caímos em Zero Tolerance, o melhor dos filmes, uma espécie de Cops à congolesa, em que seguimos uma agente da polícia enquanto ela tenta resolver dois crimes que não aconteceriam nos EUA (daí nunca irem aparecer no Cops) dois jovens de 13 anos que violaram e espancaram uma senhora alcoolizada supostamente "para a obrigarem a ir para casa descansar" e outro que - segundo a vítima - violou uma senhora idosa que, segundo o acusado, apenas a estava a proteger, apesar de ser bruxa e lhe querer matar a família toda.

É, finalmente, assim que caímos em After the Mine, em que vemos como a população que sobrou após o encerramento de uma importante mina diamantífera vai sobre vivendo, mas sempre com recurso à única técnica de realização que os realizadores parecem conhecer: ligar a câmara e ouvir as pessoas falar. Este método, de parecer que apenas se ligou a câmara, funciona bem quando a edição e montagem são bem feitas, aqui não.

Nenhum deles tem grande interesse, mas apesar de tudo fiquei satisfeito por através deles ver a realidade de um país onde creio que nunca irei. Também me deu para reflectir um pouco sobre as minhas ideias quanto à ajuda ao desenvolvimento (já tenho um livro sobre o assunto na minha lista de leituras e tudo) mas vou poupar-vos ao sofrimento e não vou expor as minhas ideias aqui, não hoje.

Se quiserem voltar a ver este filme no Doc Lisboa basta deslocarem-se ao Londres dia 17 às 16h30 ou dia 23 às 22h30.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Doc Lisboa Dia 1


Chegou Outubro e voltou o Doc Lisboa, o meu segundo festival de cinema favorito. Devo dizer que em tempos já esteve empatado em primeiro lugar com o Indie, mas já apanhei tantas secas com documentários chineses que o meti em segundo lugar, mas muito muito próximo.

Ao longo destes dias de festival (que decorre até dia 24) tentarei actualizar o blog da mesma forma que fiz no Indie, SMR apresentadas no próprio dia em que vejo o filme, para que quem queira ver o filme ainda o possa fazer em eventuais reposições. Aviso já é que não terei o mesmo ritmo (40 filmes em 11 dias é imbatível!) porque agora tenho bastante menos tempo. Mesmo assim serei cliente assíduo.

Passemos, então ao primeiro filme que vi no Doc Lisboa 2010. Vamos a isso? Vamos!


Oil Rocks:


Existem três tipos de documentários que merecem ser vistos: os que têm um tema interessante e não estão lá muito bem feitos, os que são muito bem feitos e com isso compensam o tema menos interessante e, finalmente, os que têm um tema interessante e estão muito bem feitos. Neste caso diria que estamos perante um filme da primeira categoria.

Não que tenha alguma crítica em concreto em relação ao modo como o filme foi realizado (tirando o não ter respondido a uma questão que é mencionada e merecia ser explorada), mas a sua curta duração e o tom marcadamente neutro, consequência natural da profissão do realizador - jornalista, fazem-me pensar que este filme seria uma excelente reportagem num programa como o 60 minutes.

Mas o que realmente interessa aqui é o tema, e o tema de Oil Rocks, que tem ainda o sub-título de City above the Sea, é a plataforma petrolífera de Neft Daşları no Mar Cáspio, Azerbeijão, nada mais nada menos que a maior plataforma petrolífera do mundo, em área.

O título não é um exagero, Neft Daşları é literalmente uma cidade...ao contrário das plataformas petrolíferas habituais aqui encontramos centenas de estruturas ligadas por cerca de 300km de pontes, encontramos vários prédios de vários andares (onde os trabalhadores vivem), encontramos campos de futebol, encontramos comboios e muitas outras coisas que à partida associaríamos mais a cidades em terra.

Esta plataforma petrolífera foi inaugurada em 1949 (pela União Soviética, portanto) e desde então tem estado permanentemente habitada, a 6 horas de barco da costa, por uma série de pessoas que - mesmo tendo a oportunidade de ir a terra - vivem numa espécie de redoma de vidro e realmente pensam que aquilo é o melhor do mundo, a concretização do ideal da "cidade luminosa" comunista.

Claro que ao editar este filme o realizador (Marc Wolfensberger, que só obteve autorização para filmar durante 12 dias e depois teve de voltar para terra) escolheu mostrar-nos aqueles habitantes que têm histórias mais interessantes, mas não me parece que seja só Alexandra (tão feliz com os seus óculos de fundo de garrafa e a "fantástica" casa que lhe providenciaram - que, acabaremos por ver, é um único quarto sem o mínimo de condições) a viver naquela ilusão.

Talvez os trabalhadores mais jovens não se sintam assim, mas o que transparece deste filme é que os cerca de 25oo habitantes de Neft Daşları estão ainda muito imbuídos da ideologia comunista que promovia esta plataforma como a 8ª maravilha do mundo.

É essa a realidade que mais interessa, de facto. Como o realizador explicou na sessão pós-exibição, poderia ter feito um "Greenpeace movie" em relação aos - muitíssimos - problemas ambientais que esta plataforma tem vindo a ter, mas ao focar-se antes nas pessoas Marc Wolfensberger mostrou a(s) cara(s) de uma indústria e de um país em que o indivíduo é facilmente esmagado pelo lucro ou pela propaganda, respectivamente.



Vai voltar a passar, ambas as vezes no cinema Londres, dia 17 (23h) e 23 (16h30).

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Des hommes et des dieux

Des hommes et des dieux:


Parece-me que no mundo existirão dois tipos de ateus, aqueles que - como eu -sentirão uma uma certa admiração por aqueles que detêm a capacidade de crer e os outros, talvez mais mediáticos, que defendem um raciocínio mais combativo ao conceito de uma entidade divina.

Publico este parágrafo inicial, aparentemente tão pouco apropriado a um blog de cinema, porque este filme, que vi ontem na Festa do Cinema Francês, me fez admirar ainda mais a grande dignidade com que aqueles frades agiram mas ao mesmo tempo acreditar ainda mais convictamente que não acredito nem acreditarei. Sei que acreditar é bom, torna certos momentos da vida bem mais fáceis de tolerar, mas simplesmente sou demasiado racional para isso.

Des hommes et des dieux trata, como disse, acima de tudo da grande dignidade e coragem dos 8 frades trapistas franceses que em 1996 viviam no mosteiro de Thibirine (não leiam o link antes de ver o filme se não querem ter um grande SPOILER), na Argélia. Sim, estes homens existiram e esta é a sua história.

Pouco sei sobre a guerra civil da Argélia, que assolou este país entre 1992 e 2002, mas pelo que nos é dado a entender no filme as duas facções envolvidas foram o Governo (corrupto, mas que manteve apesar de tudo alguma estabilidade no período pós-independência) e grupos extremistas de marcada influência islâmica.

Os frades, que nos são apresentados como estando naquela região do Atlas argelino desde tempos imemoriais, vivem inicialmente numa comunidade pacífica com os habitantes da região que os acolheu, sendo eles, por exemplo, que dão apoio médico à população local. É este convívio pacífico (até amistoso) o que se retrata durante a maior parte do tempo, num filme que é mais profundo que isso.

É a partir do momento em que os frades começam a ser importunados pelos guerrilheiros que, a meu ver, o filme mostra a sua verdadeira intenção, a de nos pôr a reflectir tanto sobre a tolerância religiosa (numa época em que ela é bem precisa) como sobre a forma como aqueles que decidem dedicar a sua vida à contemplação e reflexão espiritual sobrevivem, pensam e se sentem.

É aqui que este filme se mostra superior. Os frades são apresentados como oito homens de grande integridade, que aceitam o seu destino de serem árvores para que os pássaros possam pousar (metáfora linda!) mesmo à custa de sacrificios maiores do que aqueles que julgariam ter de enfrentar. Ao contrário de uma perspectiva mais hollywoodesca que poderia ter sido dada a esta história, nenhum deles é um bastião da verdade ou da fé inabalável. Todos eles sofrem e têm dúvidas, aceitando o seu papel em sinal mais de fidelidade do que sacrifício.

E muito admirei eu estes homens ao longo do filme (e admiro ainda agora, sabendo que a história é real). É preciso muita coragem, muita integridade mesmo, para não desistir e morrer de pé, se for preciso. Diz-nos Luc, um deles (tão bem interpretado por Michael Lonsdale que nem parece estar a ser...interpretado), "um homem livre não tem medo de morrer". É aqui que acho que ter fé facilita, eu não sei se teria a mesma presença de espirito para continuar, não ceder às armas, mas gosto de pensar que em situação semelhante me comportaria da mesma forma. Dizem as letras de uma das minhas músicas favoritas "I'd rather die on my feet, than live on my knees".

Espero porém nunca ter de tomar essa decisão, é sinal de que vivi sempre em paz e segurança, o desejo da maioria da população mundial e uma das razões que me levam a estar convicto da minha condição de ateu. Se deus é amor ou bondade, se o deus cristão e muçulmano são conceptualmente os mesmos, então porquê tanto ódio e tanto sofrimento em nome da religião?

Com uma execução técnica exemplar (aquela "última ceia" é das cenas que mais me transmitiu uma grande emoção de uma forma tão contida) que torna um filme longo e meditativo numa experiência que nunca é aborrecida, o realizador Xavier Beauvois fez-me acreditar que faço mal em nunca ter visto nenhum outro dos seus filmes e mostra-nos aqui uma obra que passa rapidamente para a shortlist dos dois ou três melhores filmes que vi este ano.

Excelente!




P.S.: Nota para a organização, aqueles estalidos do sistema de som tornaram-se bastante irritantes. Percebo que não podiam fazer nada durante o filme, mas poderiam ter precavido isso antes da sessão, digo eu. Os espectadores que esgotaram a sala 1 do São Jorge mereciam isso.
P.P.S.: Nota para as duas pessoas que vieram falar comigo no final da sessão. Percebo que a luz do telemóvel vos incomode, mas sinceramente acho que demonstrei todo o cuidado em esconder ao máximo a fonte de luz enquanto escrevia as minhas notas para esta SMR. E já agora fica a pergunta: como é que tirariam notas às escuras? Eu já tentei com papel e caneta mas no final das sessões acabo sempre por não perceber o que escrevi e por isso tenho optado pelo telemóvel.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Embargo

Embargo:


"Todos nós sabemos que cada dia que nasce é o primeiro dia para uns, será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais"
(José Saramago)

É com esta frase de José Saramago que o filme Embargo começa, sendo que - curiosamente - nele se retrata um dia que não é o primeiro nem o último do seu protagonista, Nuno, mas que também não será - de todo - um dia mais; é, antes pelo contrário, o dia em que fica como que soldado ao seu carro e dele não se consegue separar.

Sim, leram bem: o protagonista e o seu carro tornam-se uma só entidade.

Apesar de tudo não se preocupem, não estamos perante a versão portuguesa dos Transformers (se bem que em teoria isso daria um filme genial) nem sequer do Herbie. Embargo é um filme baseado, ou mais precisamente livremente adaptado, de um conto da autoria do senhor da citação ali de cima.

Nesse conto, tal como aqui, o protagonista torna-se vítima da sua própria dependência automóvel já que - ao que sei, porque não li o conto original - o carro ganha vida e "absorve-o". No conto essa situação bizarra tem uma mensagem: é frequentemente interpretada como uma alegoria à crescente dependência do Homem em relação às máquinas e - já bem menos alegoricamente - um aviso à navegação quanto ao impacto que uma eventual escassez de petróleo, o alimento das máquinas, poderá ter no nosso quotidiano.

Fui ver o filme dado o autor da obra original mas, para muita surpresa minha, achei que o seu ponto mais fraco é precisamente esta premissa, já que nunca nos é dada qualquer informação sobre como é que Nuno ficou preso, como (SPOILER) se soltou (FIM DE SPOILER) ou o porquê de ter tanto medo de explicar o que se lhe passou e pedir ajuda (nas minhas notas tenho escrito, com vários pontos de exclamação, "rapaz, porque é que não vais aos bombeiros?").

Esta premissa não funciona mas quase tudo o resto está lá...o actor que faz de Nuno (Filipe Costa) interpreta-o da melhor forma possível, como um pintas que vende bifanas enquanto não vende a patente da sua grande invenção, um scanner de pés (!), e mesmo os restantes personagens, inexistentes na obra original, que só nos apresenta o carro e seu condutor, estão criados de forma a transparecer um humor absurdo mas muito acertado e (infelizmente) atípico no cinema português. (De referir o personagem do José Raposo, a fazer lembrar um misto de Luis Filipe Vieira e Manuel Damásio e que é hilariante)

O mérito vai para os argumentistas, que tiveram a feliz ideia de expandir o universo criado pelo Saramago, mas sobretudo deverá ser entregue ao realizador (António Ferreira) que depois do muito elogiado Esquece tudo o que te disse consegue provar que o sucesso da sua primeira longa não foi um golpe de sorte e, na minha modesta opinião, se mostra como uma excelente alternativa à típica divisão do cinema português entre o "intelectualóide" e o "Soraia Chaves nua".

Não o coloco na minha famosa lista de filmes portugueses de que gosto mesmo pelo que disse sobre o elemento central do argumento e por ser um bocado longo demais, mas acreditem que se tivesse uma lista de "filmes portugueses que vi, gostei, recomendo e não me importaria de ver de novo" seria lá que este interessante filme passaria o resto dos seus dias.

sábado, 2 de outubro de 2010

Four Lions

Four Lions:


Se vos perguntassem qual o tema mais difícil para se fazer uma comédia qual respondiam?

Eu responderia o Holocausto, e todos sabemos que o Roberto Benigni conseguiu, com A vida é bela, a dificílima tarefa de nos fazer rir (e chorar) com o dia a dia de um campo de concentração. A minha segunda opção seria provavelmente o terrorismo islâmico e aqui, infelizmente, este Four Lions não consegue ser tão bom como a obra-prima do Benigni, o que - digamos - também era muito complicado.

Mas é assim. Four Lions mostra-nos o que se passa com um grupo de ingleses (de origem paquistanesa, e não só) que por razões diversas decidem que o que devem fazer com a sua vida é seguir o caminho da jihad e (tentar) explodir-se algures em Inglaterra.

Como já vos disse, o filme é uma comédia e tem uma coisa boa,mostra-nos algo que não duvido que seja verdade: os terroristas não são - na maior parte das vezes - os gajos super intensos que vemos nos filmes que de tempos a tempos surgem na CNN. Os terroristas, meus amigos, são maioritariamente gajos com demasiado tempo livre.

E se os terroristas reais são assim mesmo, espero que também sejam tão estúpidos como Waj, Omar, Faisal e Barry, dos quais apenas um aparenta ter alguma ideia por detrás da vontade de se martirizar enquanto que os outros estão lá - acredito eu - nem sabem bem porquê. E aqui, ao contrário do que disse há uns posts atrás, a estupidez até é uma vantagem, ao dar ao filme um tom totalmente neutro no que toca a um tema que poderia dar azo a muitas polémicas.

Sim, porque não duvidem que se se fizesse um filme sério sobre grupos terroristas organizados no interior do Reino Unido, que abordasse precisamente as mesmas coisas mas abordando-o com outro prisma, o filme não passaria tão despercebido. É que durante o filme fala-se de coisas bastante importantes até, as razões que levam a que jovens ingleses como tantos outros pensem que o martírio é uma coisa interessante, mas quando temos diálogos como aquele em que Barry (esse nome tão perfeito, por ser a perfeita antítese de um nome de terrorista) tenta explicar a sua teoria que o melhor local para bombardear é uma mesquita a coisa nunca pode ser levada muito a sério e, ouso dizer, é isso o ponto forte do filme.

É que no fundo aqui conseguiu-se um feito difícil: por um lado o filme nunca assustará os ocidentais que o vejam (não criará jamais um clima de medo em relação a hipotéticos grupos como este que existam na realidade) e por outro parece-me que nunca haverá ameaças de morte contra o realizador (Christopher Morris) porque, pura e simplesmente, os hipotéticos grupos semelhantes acabarão por pensar "que bando de idiotas" e nunca se sentirão ofendidos.

Com o mérito de fazer a melhor piada de sempre sobre uma questão que sempre quis colocar a uma pessoa profundamente religiosa ("Era o plano de Deus? Porque é que Deus queria que ele se explodisse com uma ovelha?") Four Lions é, portanto, um filme que por vezes nos faz rir com o terrorismo mas que apesar de tudo em momento algum me convenceu que justifica o grande hype que teve no Reino Unido.