terça-feira, 12 de outubro de 2010

Des hommes et des dieux

Des hommes et des dieux:


Parece-me que no mundo existirão dois tipos de ateus, aqueles que - como eu -sentirão uma uma certa admiração por aqueles que detêm a capacidade de crer e os outros, talvez mais mediáticos, que defendem um raciocínio mais combativo ao conceito de uma entidade divina.

Publico este parágrafo inicial, aparentemente tão pouco apropriado a um blog de cinema, porque este filme, que vi ontem na Festa do Cinema Francês, me fez admirar ainda mais a grande dignidade com que aqueles frades agiram mas ao mesmo tempo acreditar ainda mais convictamente que não acredito nem acreditarei. Sei que acreditar é bom, torna certos momentos da vida bem mais fáceis de tolerar, mas simplesmente sou demasiado racional para isso.

Des hommes et des dieux trata, como disse, acima de tudo da grande dignidade e coragem dos 8 frades trapistas franceses que em 1996 viviam no mosteiro de Thibirine (não leiam o link antes de ver o filme se não querem ter um grande SPOILER), na Argélia. Sim, estes homens existiram e esta é a sua história.

Pouco sei sobre a guerra civil da Argélia, que assolou este país entre 1992 e 2002, mas pelo que nos é dado a entender no filme as duas facções envolvidas foram o Governo (corrupto, mas que manteve apesar de tudo alguma estabilidade no período pós-independência) e grupos extremistas de marcada influência islâmica.

Os frades, que nos são apresentados como estando naquela região do Atlas argelino desde tempos imemoriais, vivem inicialmente numa comunidade pacífica com os habitantes da região que os acolheu, sendo eles, por exemplo, que dão apoio médico à população local. É este convívio pacífico (até amistoso) o que se retrata durante a maior parte do tempo, num filme que é mais profundo que isso.

É a partir do momento em que os frades começam a ser importunados pelos guerrilheiros que, a meu ver, o filme mostra a sua verdadeira intenção, a de nos pôr a reflectir tanto sobre a tolerância religiosa (numa época em que ela é bem precisa) como sobre a forma como aqueles que decidem dedicar a sua vida à contemplação e reflexão espiritual sobrevivem, pensam e se sentem.

É aqui que este filme se mostra superior. Os frades são apresentados como oito homens de grande integridade, que aceitam o seu destino de serem árvores para que os pássaros possam pousar (metáfora linda!) mesmo à custa de sacrificios maiores do que aqueles que julgariam ter de enfrentar. Ao contrário de uma perspectiva mais hollywoodesca que poderia ter sido dada a esta história, nenhum deles é um bastião da verdade ou da fé inabalável. Todos eles sofrem e têm dúvidas, aceitando o seu papel em sinal mais de fidelidade do que sacrifício.

E muito admirei eu estes homens ao longo do filme (e admiro ainda agora, sabendo que a história é real). É preciso muita coragem, muita integridade mesmo, para não desistir e morrer de pé, se for preciso. Diz-nos Luc, um deles (tão bem interpretado por Michael Lonsdale que nem parece estar a ser...interpretado), "um homem livre não tem medo de morrer". É aqui que acho que ter fé facilita, eu não sei se teria a mesma presença de espirito para continuar, não ceder às armas, mas gosto de pensar que em situação semelhante me comportaria da mesma forma. Dizem as letras de uma das minhas músicas favoritas "I'd rather die on my feet, than live on my knees".

Espero porém nunca ter de tomar essa decisão, é sinal de que vivi sempre em paz e segurança, o desejo da maioria da população mundial e uma das razões que me levam a estar convicto da minha condição de ateu. Se deus é amor ou bondade, se o deus cristão e muçulmano são conceptualmente os mesmos, então porquê tanto ódio e tanto sofrimento em nome da religião?

Com uma execução técnica exemplar (aquela "última ceia" é das cenas que mais me transmitiu uma grande emoção de uma forma tão contida) que torna um filme longo e meditativo numa experiência que nunca é aborrecida, o realizador Xavier Beauvois fez-me acreditar que faço mal em nunca ter visto nenhum outro dos seus filmes e mostra-nos aqui uma obra que passa rapidamente para a shortlist dos dois ou três melhores filmes que vi este ano.

Excelente!




P.S.: Nota para a organização, aqueles estalidos do sistema de som tornaram-se bastante irritantes. Percebo que não podiam fazer nada durante o filme, mas poderiam ter precavido isso antes da sessão, digo eu. Os espectadores que esgotaram a sala 1 do São Jorge mereciam isso.
P.P.S.: Nota para as duas pessoas que vieram falar comigo no final da sessão. Percebo que a luz do telemóvel vos incomode, mas sinceramente acho que demonstrei todo o cuidado em esconder ao máximo a fonte de luz enquanto escrevia as minhas notas para esta SMR. E já agora fica a pergunta: como é que tirariam notas às escuras? Eu já tentei com papel e caneta mas no final das sessões acabo sempre por não perceber o que escrevi e por isso tenho optado pelo telemóvel.

6 comentários:

  1. confesso que quando vi essa letra tive que ler tres vezes para acreditar que tinhas uma letra de merauder como preferida (http://www.youtube.com/watch?v=vLlLTdN2PNs ao 1:00) mas depois abri o link e vi que era have heart! :(

    quanto ao telemovel, poe o brilho no minimo. nao faz o truque?

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  2. Devias saber que para mim referências obscuras só no cinema, hehe.



    Infelizmente o telemóvel não tem essas opções xpto, por isso vou continuar a irritar pessoal ;)

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  3. a organização tomou nota da tua crítica ao som, aliás fui provavelmente eu ou outro colega que te demos o papelinho para votares no final ;).

    ainda bem que gostaste bué do filme...já percebi melhor porque encheu a sala (só vi o le concert da inauguração, trabalhar em festivais = nunca ver nada). irei ver também sem dúvida após ler esta review.

    uma cena curiosa é que muitas sessões da festa têm esgotado...para mim o cinema francês é talvez o melhor da europa, só não tinha noção que o público português também sabia disso ahah. em relação a tirar notas: vais ao chinês, e compras uma lanterninha daquelas pequenas...custa 2/3€ e como é fraca e permite direccionar o foco da luz já não incomodas mais que as pessoas directamente ao teu lado. é o que os júris nos festivais usam por norma ;).

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  4. Aaaah, então ainda bem que meti aqui essa dica. O que é que se passou? Aquilo estava extremamente irritante!

    Dentro do cinema europeu acho que sim, o francês ainda é o mais apreciado pelo público português, por alguma coisa a nossa cultura cinematográfica (as in, os filmes que se fazem por cá) têm uma grande influência do que se fez por lá.

    Acho que não foste, rapaz, acho que te reconheceria! De qualquer forma não recebi qualquer papelinho para votar por isso...

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  5. Não sei qual seria a alternativa mas luzes do telemóvel no cinema são tão irritantes como estalidos oh Dom João! :P

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  6. Pois eu sei que não é a solução ideal, mas ao menos eu sou querido e tapo o ecrã com a mão.

    Os estalidos a que me refiro aqui eram mais estaladões, não percebi o que se passou mas que era chato lá isso era.

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